Entre a centralização e a participação: a atuação de atores não governamentais na cooperação sul-sul brasileira., por Fernanda Cristina Nanci Izidro Gonçalves.
O objetivo deste artigo é apresentar a tendência relativamente recente de participação de atores privados na Cooperação Sul-Sul (CSS) ofertada pelo Governo brasileiro. Entende-se como Cooperação Sul-Sul uma vertente particular da Cooperação Internacional ao Desenvolvimento, qual seja, a Cooperação Técnica entre Países em Desenvolvimento (CTPD).
A política de cooperação internacional brasileira é encarada como uma política de Estado pelo Governo. Tal percepção propiciou que a cooperação técnica tenha sido âmbito de atividade exclusiva do Estado, que detinha monopólio na condução das iniciativas (VALLER FILHO, 2007). Ainda hoje essa prevalência governamental na condução da cooperação técnica brasileira é existente, entretanto vem sendo relativizada. Atualmente, as atividades oficiais de CSS mobilizam diversos setores sociais, como ONGs, Associações Nacionais de Esportes e Organizações Privadas de Interesse Público, sinalizando uma tendência de descentralização nesta área, inserida dentro de um processo mais amplo de politização da política externa.
Nos anos 70, o país começou a estruturar um programa de cooperação brasileira ao exterior. O Brasil já havia se beneficiado da transferência de conhecimentos oriundos de países mais avançados, o que contribuiu para o desenvolvimento nacional e o tornou capaz de prestar cooperação para outros países. Neste contexto, inseriu-se na prestação de cooperação para países do Sul, impulsionado por uma política de aproximação e pela demanda externa pela cooperação nacional.
Para responder à crescente demanda por cooperação, o Governo mobilizou internamente diversas instituições que haviam se favorecido das políticas nacionais de captação de cooperação técnica internacional. O Itamaraty procurava articular as parcerias, buscando negociar os convênios com as instituições envolvidas (Ibid). Nesta época, as instituições convidadas a colaborar eram basicamente governamentais, como o Ministério da Saúde e a EMBRAPA. Como exceção à regra, figuravam apenas as organizações privadas de interesse público, como o SENAI, que possuía forte vínculo com o Estado.
Esse quadro sofre alterações a partir dos anos 90, devido ao impacto que a liberalização política e econômica, aliada a outros fatores, teve sobre a formulação da política externa. Ciente do novo contexto, em que atores sociais demandavam espaço na definição das políticas estatais, o Itamaraty procurou promover uma aproximação com a sociedade (Ibid).
O início formal da interlocução sobre cooperação ocorreu no Encontro Nacional de ONGs sobre Cooperação e Redes organizado por iniciativa da Agência Brasileira de Cooperação (ABC), em 1989. Esta iniciativa permitiu uma troca de informações entre os envolvidos e serviu para que a ABC conhecesse melhor as experiências dos atores privados e pudesse acrescentá-las à cooperação tradicional. Posteriormente, outras tentativas de aprofundar o diálogo sobre cooperação foram realizadas pela ABC (OLIVEIRA, 1999).
Em paralelo a este cenário doméstico, temas como descentralização, parcerias estratégicas público-privado e transparência ganharam notoriedade (VALLER FILHO, 2007). Seguindo a nova dinâmica interna e internacional, o país buscou descentralizar a gestão da cooperação.
A partir dos anos 1990, inaugurava-se, um segundo momento na prática de cooperação técnica brasileira. Essa nova etapa correspondeu a uma gestão da cooperação com feição mais participativa, em que o MRE procurou descentralizar o sistema de cooperação (Ibid). Porém, esta tendência também estava relacionada ao intuito da corporação diplomática ampliar suas bases de apoio, o que implicaria o aumento de sua legitimidade interna e externamente (Ibid). Soma-se a isto, o fato das atividades envolverem recursos públicos, o que torna o respaldo da sociedade importante para estas iniciativas (PUENTE, 2010).
Outra razão é a evolução de um relacionamento substantivo entre Governo e atores sociais internamente. A existência de um intercâmbio profícuo criou as condições para que fosse estabelecida uma relação mais colaborativa externamente (OLIVEIRA, 1999). Destaca-se ainda o surgimento de uma agenda internacional com novas obrigações, que fez com que o Governo buscasse fora de seu aparato burocrático os conhecimentos e específicos para lidar com questões que não são objeto de consideração substantiva dos diplomatas (Ibid).
Há também o intuito do Governo avançar na CSS, trabalhando em conjunto com interlocutores capazes de auxiliar a expandir as iniciativas de cooperação prestada e atender à crescente demanda. Ressalta-se que a escolha de parceiros cooperantes não é feita de modo arbitrário, mas de modo estratégico, privilegiando os que possuem expertise suficiente para implementar as ações demandadas.
Outra questão é que a medida em que os pleitos por cooperação aumentam, torna-se necessário procurar novas parcerias para executar os projetos. Para não sobrecarregar entidades cooperantes, procura-se diversificar os parceiros, ampliando a participação de atores privados e a oferta em outras áreas.
Como reflexo desta conjuntura, ampliou-se a interação entre Governo e sociedade na cooperação técnica. Porém, na prática, há ainda mais centralização do que participação dos atores privados. Embora o aspecto operacional da cooperação seja amplo e difuso, sua concepção e direcionamento são ainda restritos ao MRE (PUENTE, 2010).
Apesar da descentralização recente, ainda observa-se nesta área específica da política externa a existência de poucas parcerias público- privado, se comparado às parcerias existentes com atores governamentais. Ademais, mesmo que atores sociais proponham parceria com a ABC para prestação de cooperação, o projeto só é realizado se aprovado e em conformidade com objetivos da política externa.
Embora a ABC seja propensa à críticas por ainda centralizar consideravelmente a formulação da cooperação, é importante ressaltar que a centralização é parte de sua função, visto ter como atribuições negociar, coordenar e acompanhar os projetos brasileiros, orientando-se através das prioridades do MRE. Assim, caberia à política de cooperação brasileira crítica semelhante à política externa em geral, isto é, que é marcada por uma “tensão entre eficácia e representatividade” (PINHEIRO, 2002, p.2).
Isto porque por um lado procura se adaptar ao novo cenário político interno e às novas tendências internacionais, mas por outro lado busca resguardar a autonomia da ABC, objetivando não desviar o rumo das políticas de cooperação e comprometer as prioridades da agenda de cooperação brasileira. Enquanto isto não é solucionado, a atuação de atores privados na CSS brasileira permanecerá marcada pela tensão entre a participação e a centralização, tendência semelhante ao que ocorre na relação entre diplomacia e sociedade em outros assuntos da política externa.
Referências bibliográficas:
GONÇALVES, Fernanda Cristina Nanci Izidro. Cooperação Sul-Sul e Política Externa: um estudo sobre a participação de atores sociais. Dissertação de Mestrado. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, maio de 2011.
OLIVEIRA, Miguel Darcy de. Cidadania e Globalização: a política externa brasileira e as ONGs. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão (Funag), 1999.
PUENTE, Carlos Alfonso Iglesias. A cooperação técnica horizontal brasileira como instrumento de política externa: a evolução da cooperação técnica com países em desenvolvimento – CTPD no período 1995-2005. Brasília: FUNAG, 2010.
PINHEIRO, Leticia. Os Véus da Transparência: Política Externa e Democracia no Brasil. IRI Textos, Rio de Janeiro, n. 25, 2002.
VALLER FILHO, Wladimir. O Brasil e a crise haitiana: a cooperação técnica como instrumento de solidariedade e de ação diplomática. Brasília: FUNAG, 2007, p. 19.
Fernanda Cristina Nanci Izidro Gonçalves é Mestre em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-RIO (fnanci@gmail.com).
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